ALMA DE JEGUE E CORAÇÃO DE RÃ-DA-FLORESTA

   Na última sexta-feira de março, o dono desse dia no OSPYCIU – Lázaro Carvalho – nos traz um texto cujo título pode até parecer não estar conectado com o tema da crônica. Mas, do “pode até” em diante a questão é que ele nos põe para refletir mais uma vez com sua escrita criativa, crítica e sempre muito bem-vinda.

    Antes de você visitar o blog, uma perguntinha: você avalia o homem pela marca, modelo e valor do carro em seu poder?

ALMA DE JEGUE E CORAÇÃO DE RÃ-DA-FLORESTA

    Depois de procurar por muito tempo, finalmente, encontrei o carro que eu tanto queria possuir, graças ao interesse de Felisberto, que é garçom da birosca que eu frequento nos finais de semana. Felisberto não se esqueceu de mim e ao tomar conhecimento de quem tinha um carro do jeitinho que eu queria, me botou na fita.

    Ele me falou que o vendedor é cliente da casa e que costumava aparecer aos sábados. E, então, no sábado eu dei as caras por lá e fui apresentado ao vendedor do carro que eu tanto queria comprar. Um sujeito bem-apessoado, jeitão de peão de boiadeiro, com um ostensivo bigodão mexicano, chapéu e botas de couro, camisa quadriculada, cinturão decorado, fivela de vaquejada e correntão de metal com pingente sobre o peito grisalho.

    A conversa entre nós foi agradável, objetiva e regida pela simpatia imediata de parte a parte. Negociamos e fechamos um negócio que foi bom para ambas as partes. Ele pareceu muito feliz com a venda e eu exultei com a compra. A partir desse momento me tornei um feliz proprietário de um Fiat Uno quadrado, ano 1993, já com injeção eletrônica, monoponto, é verdade, mas um grande avanço, sem dúvida, em relação ao saudoso carburador.

    É um carro cuja aparência inspira cuidados, a pele excessivamente ressecada carece de tratamento à base de creme esfoliante e muita hidratação. Mas, ele está vivo! O interior é todo limpinho e não faz vergonha, o coração bate certo, o juízo não falha, a circulação não compromete e o intestino funciona muito bem toda manhã.

    Meu carro tem uma direção subserviente e prestativa, que faz todas as minhas vontades sem reclamar quando pretendo mudar de sentido, e vira à direita, e vira à esquerda conforme seja a minha intenção e ainda conta com um sistema de freio eficiente e serviçal que não discute a minha ordem ante a necessidade repentina de parar. É básico e espartano na essência e na apresentação.

     Esse meu carro, para muitos, é uma declaração pública de pobreza. E daí? Comprei-o à vista, não devo nada a ninguém e posso mantê-lo pneusado e abastecê-lo confortavelmente sem estrangular meu orçamento. Não comprei carro para carregar mulheres das privilegiadas castas sociais, mulheres exigentes, espevitadas. Meu carro é para o transporte recreativo de mulheres simples, mulher do povo, mulher dos guetos urbanos de Salvador, mulher que é uma flor de aspereza, da favela e da invasão.

    É um carro para um tipo de mulher que se sente lisonjeada e se acha importante quando convidada para dar um rolé de carro por aí, tomar uma cerveja, comer uma passarinha e almoçar um ensopado redentor no melhor restaurante dum bairro da periferia. Mulher que só faz uma exigência: que o garçon se apresente com as unhas, pelo menos, aparadas, ou até manicuradas.

    Sou o proprietário de um veículo que não tem o DNA de automóvel, está mais para uma montaria. É um jerico que come capim e bebe com moderação. Um carro feito sob medida para minha única pessoa.

    É um carro para passear com mulheres despojadas de pretensões extravagantes, que nada mais pretendem da vida do que ter, ao seu lado, um homem, ainda que seja de presença intermitente, mas, capaz de lhe bancar uma receita médica, comprar um botijão de gás, pagar uma conta de água ou de luz atrasada, de vez em quando surpreendê-la com um pacote de compras de supermercado e lhe ajudar na aquisição de um novo smartphone quando for necessário.

    Um tipo de mulher que quer apenas um homem básico, de configuração simples e funcional. Enfim, um homem romântico a ponto de lhe presentear no seu aniversário de nascimento com um relógio de origem explicitada na intensidade do brilho dourado e pela quantidade de manetes de comando e botões de controle à semelhança do cockpit de um boing 747.

    E na hora de trocar a unção do óleo não faz distinção, o lubrificante pode ser mineral, sintético ou semissintético, qualquer um é aceito de bom grado, embora no seu íntimo ele tenha preferência perceptível pelo óleo de cozinha misto de soja com azeite de oliva, em qualquer proporção. Noto que ele fica, deverasmente, satisfeito e muito mais estimulado para apostar corrida.

    Em função da sua idade senil adquiriu a isenção do IPVA e, por iniciativa própria, me livra da preocupação e do medo de furto assim como da despesa com seguro ou proteção veicular e ainda goza da expressa tolerância da Justiça de Trânsito em casos de pequenos delitos. É impossível não se apaixonar por um carro desse!

   Se você, meu amigo, tem um carro que é o cartão-postal do seu poder aquisitivo e uma expressão tácita do seu status social, um carro que pensa por você, que fala por você, que age por você, que responde por você, que ama e sofre por você, parabéns!

   E se você é do tipo de pessoa que avalia o homem pela marca, modelo e valor do carro em seu poder, saiba que aonde vai o seu carro Zero, o meu pau véi também vai, atrás de você.

Lázaro Carvalho é um soteropolitano de 68 anos, pai, avô e torcedor do Esporte Clube Vitória. Escreve, por fruição, cordéis, poemas e crônicas

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