OS AVIÕES-DE-PAPO-AMARELO E A ESTRELA CADENTE DE MUSSURUNGA

Em tempos de BBB24, o bairro mais comentado de Salvador é Cajazeiras, por justa razão, já que é dele o protagonista maior do reality, o Gigante Davi. Mas, não é sobre esse bairro tão gigante quanto o seu ilustre morador que o OSPYCIU vai falar hoje.

    O mais frequente colaborador do meu blog, nosso querido Lázaro Carvalho (o dono das sextas-feiras no Ospyciu) nos presenteia com um texto muito especial e curioso sobre… MUSSURUNGA.

    É isso, quem já conhece vai se identificar muito e quem ainda não teve essa sorte, bem, depois da leitura cada um(a) que decida se o incluirá em suas rotas. Por quê? Seu Lázaro explica.

OS AVIÕES-DE-PAPO-AMARELO E A ESTRELA CADENTE DE MUSSURUNGA

    O fato de estar situado na margem direita da Av. Paralela, de peito aberto para o aeroporto internacional deputado Luís Eduardo Magalhães e de mãos estendidas para a areia branca das dunas de Itapuã não faz de Mussurunga um bairro de gente arrogante e metida a besta. Ao contrário! Seus moradores somos apenas usufrutuários do indiscutível privilégio de nossa localização e muito conscientes de que nem tudo que vem de cima pode ser visto como bonificação.

   Por Mussurunga se encontrar no meio do caminho da pista de aterragem e decolagem, as aeronaves sobrevoam as nossas cabeças o tempo todo. Mas o ronco barulhento dos motores dos aviões não atrapalha o sono de quem precisa dormir, assim, como não desperta assustado quem dorme por necessidade. Com o tempo o que poderia ser um transtorno para pessoas melindrosas, torna-se para nós um mantra védico, é como cochilar embalado no colo da mãe, no aconchego mavioso de uma canção de ninar.

   O que nos tem incomodado ultimamente são as gotículas de água espargidas sobre nós, mesmo quando o céu está limpo, refinadamente vestido com o mais bem elaborado tecido do seu traje de passeio, azul e branco que nem espuma de sabão em pó na bacia de alumínio, e que as nuvens são odaliscas que se contorcem na sensual dança do ventre diante de um sol viril e libidinoso que se controla a duras penas, mas não sem deixar de dizer obscenidades impublicáveis nos ouvidos delas que esboçam sorrisos de assanhamento e lubricidade…

    Foi no bar de Macaia que fiquei sabendo que as tais gotículas não são de água, mas, sim, de urina e que os aviões-de-papo-amarelo, que são os aviões de carreira, antes de chegarem à cabeceira da pista abrem as comportas da caixa de urina e derramam sobre nós o mijo preservado dos passageiros e da tripulação, sem que haja nenhuma razão plausível para tanto já que os caminhões-tanque, denominados “topa tudo”, que fazem a coleta dos excrementos líquidos e sólidos, se encontram de prontidão no pátio do aeroporto, logo ali na frente.

    A intensidade do tráfego aéreo sobre as nossas cabeças não diminui o interesse de quem quer vir morar aqui, assim como não deprecia o valor do metro quadrado dos desejados e disputados imóveis de Mussurunga, onde raramente uma unidade é colocada à venda. E principalmente agora que os moradores contam com a vantagem sobressalente de um deslocamento rápido, sem ladeiras, sem engarrafamento, sem nenhum tipo de obstáculo e sem imprevistos por meio dos répteis crocodilianos engolidores de gente, equivocadamente chamados de metrô.

   Eu na minha santa ingenuidade achava que os aviões-de-papo-amarelo são os responsáveis por despejar sobre nós a urina em jato único e concentrado e que o vento justo e distribuidor se encarrega de espalhá-la por todo o bairro de forma equânime para que nenhum setor fique sem receber o seu quinhão, e que os chevetes avoadores da FAB – Força Aérea Brasileira, se encarregam de descartar os dejetos sólidos sobre o município de Lauro de Freitas, aqui juntinho.

   Mas dona Roquelina, minha vizinha, uma fofoqueira de mão cheia e que tem um nível de informação que as demais vizinhas não têm, me garantiu que tanto os aviões de carreira quanto os aviões militares derramam suas porcarias sobre nós. Ativa e resoluta, dona Roquelina já arregaçou as mangas e está colhendo assinaturas para um abaixo-assinado que será encaminhado o mais brevemente possível ao DAC – Departamento de Aviação Civil, pleiteando que os aviões sejam proibidos de abrir as comportas dos reservatórios de urina sobre o bairro de Mussurunga.

Bem diferente das casas simples e objetivas do projeto original da URBIS e entregue na segunda metade da década de 1970, construídas com placas de cimento em lugar do bloco cerâmico ou do tijolo de barro, cobertas com telhas romanas e todas na cor branca com portas e janelas amarelas, é dificílimo achar uma casa em Mussurunga remanescente do projeto original, quase todas foram transformadas em mansões, com dois ou mais pavimentos, garagens espaçosas, piscinas no terraço, jardim na frente e área de lazer com churrasqueira parque infantil no fundo.

  Não nos esqueçamos que o Mahatma Ganhdi já dizia que nós ocidentais não somos mais evoluídos porque não bebemos a própria urina. Muçulmanos que seguem à risca o sunnah, tradição do profeta Maomé, bebem urina de camelo como forma de fortalecer o sistema imunológico. Na Índia, a urina de vaca é indicada para combater doenças. No Sudão do Sul o povo mundari usa a urina da vaca não só para lavar o rosto, ao acordar, como também para tomar banho no final da tarde.

    E como Mussurunga é um bairro pacífico e que ostenta um baixíssimo índice de violência fico tentado a acreditar na hipótese que a urina borrifada sobre nós é a responsável pela mansuetude de nossa gente.

   Diante das reflexões ponderadas sobre a situação confesso que estou em dúvida se serei mais um signatário do abaixo-assinado elaborado por dona Roquelina, minha vizinha, e me questiono: e se o Mahatma Gandhi estiver certo?

   Ora, morador de Mussurunga quase nunca adoece e cada dia mais e mais se fortalece na graça da virtude de não ser incréu.

   Eta povo grandemente abençoado! Eta povo retado! Povo protegido e verdadeiramente ungido pelo santo mijo que cai do céu!…

Lázaro Carvalho é um soteropolitano de 68 anos, pai, avô e torcedor do Esporte Clube Vitória. Escreve, por fruição, cordéis, poemas e crônicas

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