HOMEM INDEPENDENTE, DO PARTO AO INFARTO

Após uma breve pausa, não por falta de produção textual dele, mas devido a uma leve vontade técnica de “descansar” por parte da plataforma na qual hospedo o Ospyciu, seu Lázaro Carvalho, meu fiel colaborador das sextas-feiras nos presenteia com mais uma crônica do seu rico e infindável acervo intelectual.

   Eu já estava com saudades de receber o habitual telefonema: “meu amigo, olhe, enviei o texto para a próxima sexta, a fim de você ter tempo de revisar e, se gostar, publicar”. Seu Lázaro é isso: espírito criativo, sensível e de uma humildade rara.

   Sigamos que hoje é sexta – dia de vestir branco – e de texto dos melhores passando pela nossa vida!

HOMEM INDEPENDENTE, DO PARTO AO INFARTO

    Independente e determinado, ele nasceu quando bem quis e entendeu, no dia e hora que achou por bem se apresentar à vida e conhecer o mundo. Por conta própria empreendeu fuga das entranhas maternas, se impulsionou, se ejetou, foi abrindo caminho, se evadiu. E quando sua senhora mãe que se ocupava de colocar remendos nas roupas velhas do marido, se deu conta do efeito incômodo da parição, ele já estava com a cabeça de fora, curioso para olhar a rua.

     Durante toda sua vida ele chorou apenas uma única vez, ao receber as boas-vindas com as palmadas desferidas na sua redondinha e incipiente bunda de criança. Depois desse momento nunca mais soube o que é chorar na vida, nem de dor, nem de saudade, nem de tristeza, nem de amores perdidos. Mal acabara de nascer e já mamava com ganância e insaciedade nos farturentos peitos da mãe. Cresceu forte, ficou homem taludo, arrojado e desbravador

   Foi um rebento que toda mãe gostaria de ter. Dormia a noite toda e deixava a mãe dormir. Não chorava, não tinha cólicas, não incomodava nem mesmo quando o despontar dos primeiros dentes lhe avermelhavam e lhe inchavam a gengiva, não tinha febre nem permitia que lhe fossem próprias as inquietações comuns aos recém-nascidos.

    Comia de tudo, gostava de tudo e não enjeitava nada, brincava sozinho e não dependia de outras crianças para poder brincar. Sempre foi independente. Pulava da cama logo cedo e acordava a mãe para lhe dar café e lhe fazer as vontades. Com vigor e afoiteza ultrapassou a adolescência, alcançou a idade adulta e continuou autônomo, fazia as coisas sem pedir ajuda aos outros. Assim sempre foi ele.

    Namorou muitas vezes, noivou uma vez só, casou, separou, se juntou duas vezes, casou novamente e quando se descasou pela segunda vez não quis mais saber desse negócio de viver ao lado de mais ninguém. Tinha saúde, liberdade e independência o suficiente para viver sozinho.

    A idade foi chegando aos poucos. Abrandou sua força, reduziu a sua velocidade, embranqueceu seus cabelos, embaçou seus olhos, derrubou seus dentes, espacejou sua libido, mas nada alterou sua forma seca e independente de agir. Fazia seu café, botava o feijão no fogo de lenha, pegava água doce na cisterna, não possuía animais domésticos, não tinha cachorro, não gostava de gato, não achava a menor graça em ver a lerdeza da tartaruga andando pelo meio da casa, não criava passarinho e sempre que tinha oportunidade matava sem remorso uma perigosa e sorrateira cobra ao pé da porta da cozinha.

    Adoeceu uma única vez na vida, doença besta e sem importância, sentiu fraqueza, desânimo, moleza no corpo e ficou uns dois dias apenas sem comer direito. Foi sozinho ao médico, voltou com a receita na mão, tomou os medicamentos prescritos e foi só isso. Nunca mais teve nada de frouxura. E no dia que sentiu tontura na cabeça e turvação na vista tomou chá de capim-santo e foi dormir. Acordou disposto e ainda de madrugada foi tomar um banho frio no quintal, como de costume.

    Passou a manhã no trabalho do seu roçado, limpou o feijão, plantou maniva, podou as bananeiras, catou umas pimentas no pé, e no meio-dia sentou-se à mesa pra comer feijão com arroz, carne seca e rapadura, chupou melancia de sobremesa e palitou os dentes com as unhas. Sentou-se no estimado canapé de madeira maciça e começou a assoviar um pedaço de melodia popular do seu agrado.

    Enquanto assoviava, um pressentimento funesto se apossou da sua alma, em seguida ocasionou um curto-circuito na fiação das artérias, um congestionamento do sangue nas vias de acesso, uma espremedura no peito, um trovejo na cabeça, um apagão na vista, sua consciência entrou em pane e sentiu sua existência se desmoronar por dentro. Com toda essa estranheza num corpo saudável que durante mais de seis décadas funcionou normalmente, sem nenhuma necessidade de manutenção, não teve dúvida de que havia chegado a sua hora. Foi puxado para a imensidão do vácuo, dissolveu-se no vazio de si mesmo.

    Morreu sem a menor expectativa e sem nunca ter pensado na hipótese. Mas nem assim se insurgiu. Não protestou, não recorreu da sentença. Resignou-se, apenas. Não gritou. Não se apavorou. Não se estrebuchou. Morreu de forma pessoal e independente; com a serenidade de quem sabe morrer sem fazer escândalo. E ao constatar que estava incontestavelmente morto, não perdeu tempo. Ergueu-se do canapé de madeira maciça, tirou o relógio do pulso e trocou de roupa. Vestiu seu terno azul-marinho de cashmere imperial, calçou os sapatos marrons de camurça, trancou a casa, jogou a chave pra cima do telhado e caminhou resoluto na direção do cemitério municipal.

    Durante o trajeto não cumprimentou ninguém, não respondeu a nenhum aceno de gente conhecida. Ao chegar ao cemitério entrou pela porta da frente, caminhou por entre as sepulturas, respeitou o silêncio sepulcral, absorveu a paz inalterável do recinto e dirigiu-se até o fundo daquele condomínio de copropriedade final e encontrou o que mais procurava: uma cova aberta e sem estar reservada em nome de senhor ninguém. Entrou nela sem tardança, deitou-se devidamente, ajeitou o paletó, persignou-se, esticou as pernas e, como não gostava de claridade, fechou os olhos e dormiu para nunca mais acordar.

   Morreu de forma autônoma e individual. Morreu sem avisar ninguém, sem convidar ninguém. Sepultou-se de maneira solitária e independente. Morreu como vivera durante toda a sua estada aqui na terra.

    Não informou as coordenadas do seu novo endereço no infinito: nem o bairro, nem a rua, nem o cep nem número, justamente por nem ele mesmo saber em qual dimensão do Universo em expansão sua consciência imortal exerceria a virtude de despertar confusa.

Descanse em paz, irmão.

Lázaro Carvalho é um soteropolitano de 68 anos, pai, avô e torcedor do Esporte Clube Vitória. Escreve, por fruição, cordéis, poemas e crônicas

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